Tafnes Canto[1]
Dom
Casmurro: eis a obra!
Esta enigmática obra de
Machado de Assis tem suscitado o interesse e a curiosidade de leigos e
profissionais da História e da Literatura. Com primor, Machado construiu Dom
Casmurro, fazendo uso magistral da arte de insinuar, sem, no entanto, confirmar
qualquer fato. O resultado é um romance de sucesso. Mas, pelas lentes da
História, “Dom Casmurro” pode ser
visto para muito além de um enredo bem escrito.
Grande parte da obra abrange o
apogeu do Segundo Reinado, porém sua história, que acompanha a vida de Bentinho
até seus dias de solidão no fim da vida, estende-se pelo período da crise,
contemplando a abolição da escravidão e o período de instalação do regime
republicano. A partir da segunda metade do século XIX, a sociedade como um
todo, e por conseqüência, a família, vivia transformações em seu “habitus”, devidas, especialmente, às
influências do capitalismo. Estas transformações associadas às mudanças políticas
e econômicas se estenderam para o plano do social e do cultural, podendo ser
observadas em “Dom Casmurro”. Em
relação a esta obra, nos interessa, em especial, observar o declínio do sistema
patriarcal familiar e sua coexistência com a nova família que se formava,
conhecida como doméstica, e, por conseguinte, as novas relações de gênero que
surgiam com a emergência desta formação familiar. A análise do romance
machadiano foi orientada pela leitura de obras que trabalham as relações entre
História e Literatura, a contextualização histórica da família na virada do
Império para a República, bem como apreciações históricas das obras de Machado
de Assis, realizadas preferencialmente por historiadores, a exemplo de Sidney
Chalhoub.
Contrariando o conselho de
Bosi (1994), que diz que um romance machadiano não deve ser resumido, pois o
que neles importa, realmente, não são os fatos em si, mas as múltiplas
intenções e pequenas atitudes e gestos de suas personagens, nos valeremos deste
recurso para familiarizar o leitor com o enredo construído por Machado. Na
obra, quase uma memória póstuma, Bento Santiago descreve – ao final de sua vida
– sua história com Capitu, e como ele
mesmo, o Bentinho da infância, veio a tornar-se Dom Casmurro, um homem recluso,
ensimesmado, e por que não dizer, desconfiado.
Assim como em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o
narrador de “Dom Casmurro” não é
onisciente. Bento conta a história a partir de sua perspectiva, seu objetivo é
convencer o leitor de seu ponto de vista, ou seja, persuadir-nos de que Capitu,
sua amiga de infância e esposa, é realmente culpada de adultério. Gledson
explica que embora o que Bento diga não seja a verdade, nem fidedigno, se sua
retórica nos convencer “partilharemos suas limitações e deixaremos de entender
a verdade que o autor (isto é, Machado) torna acessível a nós, e da qual o
próprio narrador, como personagem, faz parte”. (GLEDSON, 1986, p. 16).
A família em Dom Casmurro
O narrador-personagem, Bento
Santiago, é um herdeiro de uma família de posses. Sua família mudou-se para o
Rio de Janeiro quando o pai, Pedro de Albuquerque Santiago foi eleito deputado.
Os Santiago possuíam terras, nove casas – cujo aluguel lhes rendia mensalmente
um conto e setenta mil réis mensais – e escravos, cujo aluguel também compunha
a renda de Dona Glória, mãe de Bentinho. Mas, como muito bem observado por
Roncari, a família de Bento apresenta-se como uma família patriarcal em
declínio, “só há ruínas e simulacros: o retrato dos pais na parede, escravos
que não sustentam mais a família, agregados volúveis que com pouca coisa mudam
de opinião, como é o caso de José Dias” (RONCARI, 1993, p. 211).
Na família originária de
Bento, podemos perceber elementos da família patriarcal, e que, em alguns
casos, permanecerão na família doméstica, como por exemplo, a religiosidade. O
primeiro filho de Dona Glória nasceu morto, por esta razão, “pegou-se com Deus
para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão metê-lo na igreja”.
Conforme os anos iam passando e com a chegada da viuvez, Dona Glória passou a
sentir o temor de separar-se do filho, “mas era tão devota, tão temente a Deus,
que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares”
(ASSIS, 2009, p. 63). Chegado os quinze anos de Bentinho, o assunto veio à tona
na casa dos Santiago, causando grande comoção no rapaz e em sua amiga de
infância, Capitu:
A
atenção de Capitu estava agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não
acabava de entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal
que minha mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a
Deus, não poderia deixar de cumprir (ASSIS, 2009, p. 76)
A
partir daí, o casal procurará de todas as formas livrar Bentinho do Seminário.
Como bem explica Sidney Chalhoub, a personagem Capitu,
consegue
penetrar a lógica patriarcal e, desvendá-la, e então interpretar corretamente
as motivações e atitudes de seus antagonistas de classe. As pessoas não são
boas ou más, como pensa Bentinho, apenas expressam seus preconceitos sociais e
culturais (2003, p. 88)
Dona
Glória aprovava a amizade entre Bentinho e Capitu: “A promessa de D. Glória é o
impedimento para que Bentinho e Capitu possam casar-se. Único empecilho, de
resto, pois a mãe de Bentinho não tem prosápias de classe e preza os Pádua,
pais de Capitu”. (BOSI, 2002, p. 59).
A família de Capitu não
tinha bens. O senhor Pádua era funcionário público e era proprietário da casa
que morava com sua família. Não se pode dizer que eram agregados, pois
financeiramente, não dependiam em nada da família Santiago. Pelo contrário,
este personagem criado por Machado, não via com bons olhos os agregados: “Não,
eu não sou como os outros, certos parasitas, vindo de fora para a desunião das
famílias, aduladores baixos, não; eu sou de outra espécie; não vivo papando os
jantares nem morando em casa alheia.” (ASSIS, 2009, p. 126)
O velho Pádua não admitia
ser como eles, pois não contava com a renda dos Santiago, apenas com os bons
conselhos de Dona Glória, e a isto se resumia sua divida de gratidão. As duas
famílias cultivavam boas relações, mesmo que a família Pádua não estivesse em
equidade sócio-econômica com a família vizinha.
Até este momento da
narrativa, Machado vem mostrando que os valores da família patriarcal já não
eram tão estanques ou rigidamente considerados como no passado. Como se pode
constatar, a escravidão não era o único sustentáculo desta família, que se
lançara também no ramo imobiliário. Relações de convívio e amizade
estabelecidas somente com aqueles pertencentes ao círculo das melhores
famílias, também parecem não ser a prática adotada pela família Santiago
descrita por Machado de Assis, tão pouco Dona Glória opunha-se a um casamento
desigual, valorizando os dotes e o patrimônio das famílias com as quais se
relacionava. Esta nova postura pode ser vista como um sintoma de que a
realidade nas poderosas famílias da elite - que viam o casamento como parte dos
negócios familiares - estava transformando-se e que os valores românticos, um
dos elementos importantes no surgimento da família doméstica, começava a mudar
a feição das famílias patriarcais.
Para narrar o ocaso da família
patriarcal, Machado de Assis, mais uma vez, dedica uma atenção especial à
figura dos agregados. Nos romances anteriores, estes apareciam ascendendo
socialmente através do casamento. Em “Dom
Casmurro”,
a
história de Bentinho e Capitu dispõe de narração mais encorpada; e o gosto de
marcar as personagens secundárias, como o tipo superlativo do agregado José
Dias, dá-lhe um ar de romance de costumes que não destoa das referencias
precisas que nele se fazem à atmosfera e os padrões familiares do Rio nos
meados do século. (BOSI, 1994, p. 182).
O
personagem José Dias parece deixar claro qual a estratégia que deveria ser
empregada pelos agregados para contornarem o sistema e conquistarem seus
objetivos, sem contrariar a vontade de seus protetores. Isto fica evidente
quando argumenta que já era tempo de Bentinho participar de eventos sociais,
oferecendo-se para ser seu acompanhante e assim, poder realizar seu desejo de
ir ao teatro. Ou mesmo, nas muitas tentativas que fez de convencer Bentinho de
que uma viagem à Europa poderia livrá-lo do seminário. Capitu, mais uma vez, é
a personagem que vê através do sistema e planeja usar o poder de persuasão que
o agregado possuía dentro da casa dos Santiago para evitar que seu namorado
partisse para se dedicar à vida eclesiástica. Mas, como veremos mais adiante, a
solução não viria do agregado, pois no enredo construído por Machado não foi
ele o articulador da saída de Bento do seminário.
A própria personagem Capitu,
que não era uma agregada, mas encontrava-se em posição inferior, fazia uso das
sutilezas, procurando aproximar-se cada vez mais de Dona Glória, até que ela
não pudesse pensar em outra nora que não fosse ela, caso os planos da saída de
Bento do seminário realmente se concretizassem: ”Como vês, Capitu, aos quatorze
anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois;
mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas e
alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos” (ASSIS, 2009, p.
76) Para Gledson, esta personagem descrita como meio-menina, meio-mulher, não
está, absolutamente, alheia ao sistema e ao seu funcionamento, e, por conhecer
sua lógica, age por dentro das engrenagens do sistema patriarcal.
Assim, agregados e
subordinados sempre evitavam o confronto direto com seus superiores,
perseguindo seus objetivos, sem chocar-se com o sistema patriarcal, mas
burlando-o com dissimulação, estratégia e astúcia. Só assim, poderiam enfrentar
seus poderosos antagonistas, sempre prontos a sufocar aqueles que se mostrassem
insubordinados. Mais adiante, veremos como Bento, um herdeiro da classe
senhorial, ao formar uma família doméstica – com uma mentalidade ainda
patriarcal – veio a lidar com estas questões.
Porém, como já adiantamos a
pouco, não foi a engenhosidade do agregado José Dias – apesar das inúmeras
iniciativas – que levou Bento a abandonar os estudos teológicos, para
dedicar-se à Faculdade de Direito em São Paulo, mas seu amigo Escobar, outro
seminarista sem vocação, como podemos perceber nesta passagem do romance:
-
Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um
sacerdote , que não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho
órfão, fazê-lo ordenar a sua custa, está dado um padre ao altar , sem que você...
(...)
-
Sim, parece que é isso; realmente a promessa cumpre-se, não se perdendo o
padre. (ASSIS, 2009, p. 187)
O casamento de Bentinho e Capitu:
relações de gênero
A solução agradou a todos, e
após Bentinho ter deixado o Seminário, concluiu estudos de Direito em São
Paulo. Por ocasião de seu retorno, a presença de Capitu na casa dos Santiago já
era indispensável e o casamento se deu sem qualquer preocupação com as diferenças
sócio-econômicas que existiam entre eles. Na verdade, a imaturidade emocional
de Bento, permitiu que Capitu a ele se impusesse, em uma união socialmente
desigual.
O dote, tão importante em
tempos anteriores para as famílias da elite nas negociações de casamento,
sequer é mencionado em Dom Casmurro,
o que corrobora as afirmações de Muaze, que nos explica que durante o século
XIX
(...)
a concessão do dote se transformou. Perdeu o caráter de veiculo privilegiado de
transferência de riquezas para que um casal iniciasse sua vida produtiva . Seus
valores raramente ultrapassavam a legitima e os pais não necessitavam utilizar
a terça para completar ou melhorar o dote da primeira filha, como ocorria
anteriormente. Apresentou-se sob outras formas e roupagens até que os debates
travados na imprensa, literatura e academia de medicina e outros veículos ,
acrescidos de um ideal de amor romântico, acabassem, pouco a pouco, diluindo
essa tradição por completo (2008, p.48).
Além
da ausência de dote, a equidade etária do casal, que possuía apenas um ano de
diferença, e um casamento por amor representam um comportamento muito distinto
das preocupações da elite patriarcal empenhada na manutenção do poder e da
fortuna. A família estava, efetivamente, mudando suas práticas.
Na narrativa de Machado,
Capitu e Bento formam um pequeno núcleo familiar, residindo separadamente das
famílias de origem, no alto da Tijuca. Em capítulo denominado “No Céu”, o narrador descreve
poeticamente – e com a imaginação que é própria de Bentinho –, os primeiros
anos de casado:
(...)
o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas
ainda as que serão descobertas daqui a muitos séculos. (...) De quando em
quando, tornávamos ao passado e divertíamo-nos em relembrar as nossas tristezas
e calamidades, mas isso mesmo era um modo de não sairmos de nós. (ASSIS, 2009, p. 193 e 194)
As
alterações significativas introduzidas no cotidiano das mulheres também podem
ser constadas em “Dom Casmurro”, uma
vez que nela são descritos os passeios, as visitas a parentes e amigos
chegados, as idas ao teatro e aos bailes, tão comuns na vida dos personagens
machadianos. Bento diz que nestes momentos, Capitu comportava-se “como um
pássaro que saísse da gaiola” (ASSIS, 2009, p. 196). A referência feita ao
termo gaiola para representar o
domicílio familiar, parece sugerir que, a despeito das conquistas das mulheres,
estas ainda se encontravam presas à estrutura própria da família doméstica. O
casal que vivia agora para si, quando em sua residência, passava as noites na
janela, contemplando o mar, o céus, as montanhas, os navios e as pessoas que
passavam na praia. É o personagem Bentinho quem nos dá mais detalhes:
Às
vezes eu contava a Capitu a história da cidade, outras dava-lhe notícias de
astronomia; notícias de amador que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre
tanto que não cochilasse um pouco. Não sabendo piano, aprendeu depois de
casada, e depressa, e daí a pouco tocava nas casas de amizade. Na Glória era uma
de nossas recreações; também cantava, mas pouco e raro, por não ter voz; um dia
chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu o alvitre. (ASSIS,
2009, p. 197).
Assim
que o enredo desloca-se para a família doméstica formada por Bento e Capitu,
podemos perceber a introdução de alguns elementos ao cotidiano das mulheres, tais
como a ampliação da sociabilidade feminina, a valorização das mulheres que
soubessem tocar piano e que colocassem em prática a arte de bem-receber. Por
estarem mais sujeitas à exposição pública, precisavam representar bem o esposo,
onde quer que se encontrassem, demonstrando controle absoluto sobre o
funcionamento do lar.
No que diz respeito aos papéis
sociais, o homem ainda é o único provedor da família. Mas, nem tudo permanece
igual, Bento, por exemplo, não vive de renda como o personagem Jorge, de “Iaiá Garcia” – outra obra machadiana-
ele sustenta sua família com seu trabalho como advogado. A mulher, na figura de
Capitu, permanece no âmbito doméstico, cuidando da casa e do filho, que chega
depois do que foi uma longa espera para os personagens. Esta espera foi marcada
pela religiosidade, pois “Capitu pedia-o em suas orações” e diz Bentinho, “eu
mais de uma vez dava por mim a rezar e pedi-lo” (ASSIS, 2009, p. 196).
Quando
Machado de Assis narra o nascimento do tão esperado filho de Bento e Capitu –
que recebeu o nome de seu melhor amigo, Ezequiel (primeiro nome de Escobar),
casado com a melhor amiga de Capitu, Sancha – fica nítida outra importante
mudança na feição da família. A transformação a que nos referimos é a que se dá
em relação ao papel da criança na família doméstica, que passa a receber muita
atenção já em meados do século XIX, mesmo nas famílias patriarcais.
Uma das alterações
introduzidas pela difusão das relações capitalistas no Brasil, foi a de que a
criança passou a ser vista como uma consumidora em potencial, o que contribuiu
para sua valorização. No romance machadiano, Bento relata que comprava muitos
brinquedos para o menino Ezequiel: “nunca lhe dei oratórios; mas cavalos de pau
e espada à cinta eram com ele. (...) Comprei-lhe soldadinhos de chumbo,
gravuras de batalha que ele mirava por muito tempo (...).“ (ASSIS, 2009, p.
205).
O texto de Machado retrata bem
as conclusões da investigação feita por Mariana Muaze, que nos explica que, com
a entrada do capitalismo,
em
termos de consumo, o público infantil também configurava como alvo das mais
tentadoras ofertas expostas nas chamativas vitrines de algumas lojas de
brinquedo da corte. Com o tempo, os brinquedos rústicos, de madeira, vão
dividir espaço com os importados, muitos dos quais possuíam sofisticados
sistemas de corda e dispositivos musicais (2008, p. 168).
Também
corrobora a análise feita por Raquel Zumbano Atman, em seu artigo “Brincando na História”, - produzido para
compor a obra “História das Crianças no
Brasil”, organizado por Mary Del Priore. Neste texto, a autora afirma que
em fins do século XIX, as crianças também se tornaram alvo do mercado interno
brasileiro, com o surgimento de pequenas indústrias que produziam “carrinhos de
madeira, bonecas com materiais cada vez mais sofisticados, os trenzinhos de
metal, objetos de consumo que despertam na criança o sentimento de posse, o
desejo de ter, dificultando o prazer de inventar, construir.” (2000, p. 253)
Assim, estas duas autoras sugerem que o surgimento de uma sociedade de consumo
– em decorrência dos efeitos do modo de produção capitalista que precisava de
mais e mais mercados consumidores – transformou as formas de viver e pensar da
sociedade brasileira, alcançando até mesmo as práticas e brincadeiras infantis.
Como relatamos no capítulo
anterior, na família doméstica há uma maior proximidade entre os pais e os
filhos, e, em vários momentos do romance, Machado narra a interação do menino
Ezequiel com os membros adultos da família. Isto pode ser observado na
descrição que realiza das imitações que o garoto faz de Escobar, da prima
Justina e do agregado José Dias. Machado
também narra momentos em que o garoto sentava com o pai à mesa, vinha recebê-lo
do trabalho na escada, beijava-o no gabinete pela manhã, pedia à bênção antes
de dormir e frequentava as missas na companhia da mãe. O personagem Bento expressa também sua
proximidade com o filho, como se pode constatar neste trecho:
Fora,
vivia com o espírito no menino; em casa, com os olhos a observá-lo, a mirá-lo,
a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu estava tão inteiramente nele, e
várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante.
(...) As horas de maior encanto e mistério eram as da amamentação. Quando eu
via o meu filho chupando o leite da mãe, e toda aquela união da natureza para a
nutrição e vida de um ser (...) ficava que nem sei dizer, nem digo (...)
(ASSIS, 2009, p. 201).
A
menção à amamentação pode ser entendida como uma referência ao papel de nutriz
que a mãe exercia nesta época, qualidade exaltada pelos conhecimentos
médicos-cientificos em expansão neste período. Mais uma vez o romance nos
permite reconstituir um período em que, gradativamente, os médicos, e não mais
os padres ou professores, passam a interferir nos lares brasileiros.
Todos os elementos apontados
até aqui, a constituição de um lar nuclear, o casamento por amor, a equidade
etária, a possibilidade de uniões em disparidade sócio-econômica, casas
mantidas pelo trabalho e, não apenas pelas rendas advindas do patrimônio
administrado, e as mudanças no papel da mulher e da criança, atestam que
Machado de Assis, no romance “Dom
Casmurro”, narrou as mudanças em curso nas famílias da elite brasileira.
Mas, para autores como Roncari, é o mistério maior que envolve a obra – a
infidelidade ou não de Capitu – que se constitui na maior evidência – presente
no enredo de Machado – de que a sociedade efetivamente mudara. Para Roncari, a
família doméstica constituída por Bento e Capitu é
justamente
o oposto da família patriarcal, a família doméstica que só vive o idílio (...).
Essa família fechada, restrita ao casal, porém, desmorona com a traição. Idílio
e traição, fechamento e traição, são dois elementos impossíveis para a família
patriarcal. Esta tem que ser aberta, ampla, agregadora, tendo consigo uma
dimensão de domínio social e político, caso contrário ela não se realiza de
fato. E a traição destrói a própria figura do patriarca; é impensável a
suspeita da traição na família patriarcal (1993, p. 211)
Para
Chalhoub, Bento, enquanto um herdeiro da classe senhorial, “escrevendo no final
da década de 1890, está empenhado em encontrar justificativas para o seu
empobrecimento e decadência social” (2003, p. 83). Tomando para si a condição
de vítima, é sobre a figura dos agregados, subordinados e dependentes que “Dom Casmurro” coloca a culpa de sua
decadência e infelicidade, que na verdade, são conseqüências de sua inabilidade
para lidar com as dimensões políticas de sua ruína. Ao longo do romance, o
narrador faz um retrospecto de sua vida e reinterpreta os fatos. Aquilo que
para Capitu constituía-se em uma forma de resistência e sobrevivência em uma
sociedade desigual, foi analisado por “Dom
Casmurro” como traição e falsidade, por isso, “Capitu não pode então escapar
de sofrer os ataques e a sanha vingativa do marido, de Dom Casmurro”.
(CHALHOUB, 2003, p. 84).
Embora esteja certo da
traição, Bento não a admite para os seus. Embora a separação do casal se dê
efetivamente, não é dada a conhecer aqueles com quem conviviam, devido a um
estratagema criado por Bento. Capitu e Ezequiel – que, na visão de Dom
Casmurro, é fruto do adultério – são enviados à Suíça, acompanhados de uma dama
de companhia encarregada de lhes ensinar línguas – aspecto muito importante já
que a separação era definitiva e mãe e filho deveriam permanecer no exterior.
Bento viaja à Europa apenas para simular visitas à esposa e ao filho,
despistando àqueles que perguntavam por eles.
A transição de Bento para “Dom
Casmurro” demonstra o quanto foi doloroso este processo de separação,
ratificando também que a troca de valores e a mudança de mentalidades não se
deram tão rapidamente para muitos dos brasileiros. Do mesmo modo, as relações
de gênero não sofreram alterações tão profundas com o declínio do sistema
patriarcal. Pode-se dizer que isto fez com que o personagem criado por Machado,
no fim de sua vida e saudoso dos tempos do patriarcalismo, decide reproduzir –
em sua residência no Engenho Novo – a casa da Rua Matacavalos, assim, “num
cenário físico e social tão transformado como o do Rio em 1899, Bento ainda
pode pensar em construir uma casa com o mesmo “aspecto e economia” que a de sua
infância”. (GLEDSON, 1986, p. 56).
Em “Dom Casmurro”, Machado de Assis narrou com maestria este processo
de adaptação da sociedade brasileira às mudanças que vinham ocorrendo desde
meados do século XIX, e que encontraram seu auge na virada para o século XX.
Dentre elas, apontou para o surgimento da família doméstica, que se apresentava
como um novo modelo, pelo menos, para a elite. Também deixou claro, que esta
nova família, a doméstica, coexistiu com a família patriarcal em decadência,
modelo que, pouco a pouco, precisou ceder espaço para o padrão nuclear burguês.
Considerações
finais
Podemos dizer que
Machado de Assis, em Dom Casmurro, tematiza a transformação do modelo familiar
das elites a partir, entre outros fatores, da entrada maciça do capitalismo no
Brasil. Nesta obra, a família patriarcal é narrada não mais em toda a sua pompa
e poder, mas com foco em sua decadência e na transformação de seus valores.
Machado, em razão disso, nos apresenta – em uma mesma obra –, tanto a família
patriarcal, quanto a doméstica, o que se aproxima das conclusões das pesquisas
mais recentes, que afirmam que não houve uma ruptura radical entre os dois
modelos, já que conviveram por um bom tempo. A figura de Dom Casmurro pode ser
apontada como a personificação desse doloroso e gradativo processo de mudança.
Cabe ressaltar a importância assumida pela criança na família doméstica, bem
como a ampliação da sociabilidade feminina, fenômenos que foram observados na
família doméstica formada por Bento, Capitu e o filho Ezequiel. Por outro lado,
não se pode afirmar que o surgimento da família doméstica tenha reformulado os
papéis sociais ocupados pelo homem e pela mulher dentro da família visto que,
apenas substitui-se o patriarca pelo pater
cidadão, e que à esposa ainda cabe as tarefas estritamente relacionadas ao
âmbito do lar.
Historicamente, diversos
fatores promoveram a transformação dessas famílias, embora, inicialmente
acreditássemos que o capitalismo tivesse sido o único responsável para as
mudanças nas famílias da elite na virada do Império para a República. Ao longo
da pesquisa, descobrimos que além da entrada maciça do modo de produção
capitalista, também contribuíram para a transformação: as expressões do
individualismo, a crescente urbanização, os valores românticos e a valorização
do conhecimento médico – científico. De um modo especial, estes foram os
propulsores da grande transformação a que as famílias da elite estiveram
sujeitas. De maneira gradual, estes fatores foram moldando a cultura e o “habitus” das famílias patriarcais.
Bentinho e Capitu, os personagens de “Dom
Casmurro”, assim como muitos brasileiros das primeiras décadas do século XX
viveram concretamente as implicações de uma sociedade marcada pelo capital e
pelo consumo, pela continuidade e ampliação das expressões do individualismo e
pelas transformações que a multiplicação do conhecimento promove
constantemente.
Referencias
Bibliográficas
ASSIS,
Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro.
Porto Alegre: L&PM, 2009.
ALTMAN,
Raquel Zumbano. Brincando na História. In: PRIORE, Mary Del. História das Crianças no Brasil. 2 ed.
– São Paulo: Contexto, 2000, p. 231
a 258.
BOSI,
Alfredo. Machado de Assis. São
Paulo: Publifolha, 2002.
BOSI,
Alfredo. História Concisa da Literatura
Brasileira. 32ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1994.
CHALHOUB,
Sidney. Machado de Assis Historiador.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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John. Machado de Assis: Ficção e
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MUAZE,
Mariana. As Memórias da Viscondessa:
família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
RONCARI, Luis
(debatedor). Direções da Pesquisa em Literatura e História. In: CHIAPPINI,
Ligia e AGUIAR, Flávio Wolf. Literatura
e História na América Latina: Seminário Internacional 9 a 13 de setembro de 1991.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.
[1]
Graduada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e especialista
em Metodologia do Ensino pela FAP-PR.