Páginas

25 de julho de 2013

Bentinho e Capitu: as relações familiares no século XIX sob a interface de Dom Casmurro


                                                                                                                      Tafnes  Canto[1]
                                                                                                                                                        
Dom Casmurro: eis a obra!
                  Esta enigmática obra de Machado de Assis tem suscitado o interesse e a curiosidade de leigos e profissionais da História e da Literatura. Com primor, Machado construiu Dom Casmurro, fazendo uso magistral da arte de insinuar, sem, no entanto, confirmar qualquer fato. O resultado é um romance de sucesso. Mas, pelas lentes da História, “Dom Casmurro” pode ser visto para muito além de um enredo bem escrito.
                  Grande parte da obra abrange o apogeu do Segundo Reinado, porém sua história, que acompanha a vida de Bentinho até seus dias de solidão no fim da vida, estende-se pelo período da crise, contemplando a abolição da escravidão e o período de instalação do regime republicano. A partir da segunda metade do século XIX, a sociedade como um todo, e por conseqüência, a família, vivia transformações em seu “habitus”, devidas, especialmente, às influências do capitalismo. Estas transformações associadas às mudanças políticas e econômicas se estenderam para o plano do social e do cultural, podendo ser observadas em “Dom Casmurro”. Em relação a esta obra, nos interessa, em especial, observar o declínio do sistema patriarcal familiar e sua coexistência com a nova família que se formava, conhecida como doméstica, e, por conseguinte, as novas relações de gênero que surgiam com a emergência desta formação familiar. A análise do romance machadiano foi orientada pela leitura de obras que trabalham as relações entre História e Literatura, a contextualização histórica da família na virada do Império para a República, bem como apreciações históricas das obras de Machado de Assis, realizadas preferencialmente por historiadores, a exemplo de Sidney Chalhoub.
                  Contrariando o conselho de Bosi (1994), que diz que um romance machadiano não deve ser resumido, pois o que neles importa, realmente, não são os fatos em si, mas as múltiplas intenções e pequenas atitudes e gestos de suas personagens, nos valeremos deste recurso para familiarizar o leitor com o enredo construído por Machado. Na obra, quase uma memória póstuma, Bento Santiago descreve – ao final de sua vida –  sua história com Capitu, e como ele mesmo, o Bentinho da infância, veio a tornar-se Dom Casmurro, um homem recluso, ensimesmado, e por que não dizer, desconfiado.
                  Assim como em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o narrador de “Dom Casmurro” não é onisciente. Bento conta a história a partir de sua perspectiva, seu objetivo é convencer o leitor de seu ponto de vista, ou seja, persuadir-nos de que Capitu, sua amiga de infância e esposa, é realmente culpada de adultério. Gledson explica que embora o que Bento diga não seja a verdade, nem fidedigno, se sua retórica nos convencer “partilharemos suas limitações e deixaremos de entender a verdade que o autor (isto é, Machado) torna acessível a nós, e da qual o próprio narrador, como personagem, faz parte”. (GLEDSON, 1986, p. 16).
A família em Dom Casmurro
                  O narrador-personagem, Bento Santiago, é um herdeiro de uma família de posses. Sua família mudou-se para o Rio de Janeiro quando o pai, Pedro de Albuquerque Santiago foi eleito deputado. Os Santiago possuíam terras, nove casas – cujo aluguel lhes rendia mensalmente um conto e setenta mil réis mensais – e escravos, cujo aluguel também compunha a renda de Dona Glória, mãe de Bentinho. Mas, como muito bem observado por Roncari, a família de Bento apresenta-se como uma família patriarcal em declínio, “só há ruínas e simulacros: o retrato dos pais na parede, escravos que não sustentam mais a família, agregados volúveis que com pouca coisa mudam de opinião, como é o caso de José Dias” (RONCARI, 1993, p. 211).
                  Na família originária de Bento, podemos perceber elementos da família patriarcal, e que, em alguns casos, permanecerão na família doméstica, como por exemplo, a religiosidade. O primeiro filho de Dona Glória nasceu morto, por esta razão, “pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, prometendo, se fosse varão metê-lo na igreja”. Conforme os anos iam passando e com a chegada da viuvez, Dona Glória passou a sentir o temor de separar-se do filho, “mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares” (ASSIS, 2009, p. 63). Chegado os quinze anos de Bentinho, o assunto veio à tona na casa dos Santiago, causando grande comoção no rapaz e em sua amiga de infância, Capitu:
A atenção de Capitu estava agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ela, temente a Deus, não poderia deixar de cumprir (ASSIS, 2009, p. 76)
                  A partir daí, o casal procurará de todas as formas livrar Bentinho do Seminário. Como bem explica Sidney Chalhoub, a personagem Capitu,
consegue penetrar a lógica patriarcal e, desvendá-la, e então interpretar corretamente as motivações e atitudes de seus antagonistas de classe. As pessoas não são boas ou más, como pensa Bentinho, apenas expressam seus preconceitos sociais e culturais (2003, p. 88)
                     Dona Glória aprovava a amizade entre Bentinho e Capitu: “A promessa de D. Glória é o impedimento para que Bentinho e Capitu possam casar-se. Único empecilho, de resto, pois a mãe de Bentinho não tem prosápias de classe e preza os Pádua, pais de Capitu”. (BOSI, 2002, p. 59).
                     A família de Capitu não tinha bens. O senhor Pádua era funcionário público e era proprietário da casa que morava com sua família. Não se pode dizer que eram agregados, pois financeiramente, não dependiam em nada da família Santiago. Pelo contrário, este personagem criado por Machado, não via com bons olhos os agregados: “Não, eu não sou como os outros, certos parasitas, vindo de fora para a desunião das famílias, aduladores baixos, não; eu sou de outra espécie; não vivo papando os jantares nem morando em casa alheia.” (ASSIS, 2009, p. 126)
                     O velho Pádua não admitia ser como eles, pois não contava com a renda dos Santiago, apenas com os bons conselhos de Dona Glória, e a isto se resumia sua divida de gratidão. As duas famílias cultivavam boas relações, mesmo que a família Pádua não estivesse em equidade sócio-econômica com a família vizinha.
                     Até este momento da narrativa, Machado vem mostrando que os valores da família patriarcal já não eram tão estanques ou rigidamente considerados como no passado. Como se pode constatar, a escravidão não era o único sustentáculo desta família, que se lançara também no ramo imobiliário. Relações de convívio e amizade estabelecidas somente com aqueles pertencentes ao círculo das melhores famílias, também parecem não ser a prática adotada pela família Santiago descrita por Machado de Assis, tão pouco Dona Glória opunha-se a um casamento desigual, valorizando os dotes e o patrimônio das famílias com as quais se relacionava. Esta nova postura pode ser vista como um sintoma de que a realidade nas poderosas famílias da elite - que viam o casamento como parte dos negócios familiares - estava transformando-se e que os valores românticos, um dos elementos importantes no surgimento da família doméstica, começava a mudar a feição das famílias patriarcais.                     
                     Para narrar o ocaso da família patriarcal, Machado de Assis, mais uma vez, dedica uma atenção especial à figura dos agregados. Nos romances anteriores, estes apareciam ascendendo socialmente através do casamento. Em “Dom Casmurro”,
a história de Bentinho e Capitu dispõe de narração mais encorpada; e o gosto de marcar as personagens secundárias, como o tipo superlativo do agregado José Dias, dá-lhe um ar de romance de costumes que não destoa das referencias precisas que nele se fazem à atmosfera e os padrões familiares do Rio nos meados do século. (BOSI, 1994, p. 182).
                  O personagem José Dias parece deixar claro qual a estratégia que deveria ser empregada pelos agregados para contornarem o sistema e conquistarem seus objetivos, sem contrariar a vontade de seus protetores. Isto fica evidente quando argumenta que já era tempo de Bentinho participar de eventos sociais, oferecendo-se para ser seu acompanhante e assim, poder realizar seu desejo de ir ao teatro. Ou mesmo, nas muitas tentativas que fez de convencer Bentinho de que uma viagem à Europa poderia livrá-lo do seminário. Capitu, mais uma vez, é a personagem que vê através do sistema e planeja usar o poder de persuasão que o agregado possuía dentro da casa dos Santiago para evitar que seu namorado partisse para se dedicar à vida eclesiástica. Mas, como veremos mais adiante, a solução não viria do agregado, pois no enredo construído por Machado não foi ele o articulador da saída de Bento do seminário.
                  A própria personagem Capitu, que não era uma agregada, mas encontrava-se em posição inferior, fazia uso das sutilezas, procurando aproximar-se cada vez mais de Dona Glória, até que ela não pudesse pensar em outra nora que não fosse ela, caso os planos da saída de Bento do seminário realmente se concretizassem: ”Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos” (ASSIS, 2009, p. 76) Para Gledson, esta personagem descrita como meio-menina, meio-mulher, não está, absolutamente, alheia ao sistema e ao seu funcionamento, e, por conhecer sua lógica, age por dentro das engrenagens do sistema patriarcal.
                  Assim, agregados e subordinados sempre evitavam o confronto direto com seus superiores, perseguindo seus objetivos, sem chocar-se com o sistema patriarcal, mas burlando-o com dissimulação, estratégia e astúcia. Só assim, poderiam enfrentar seus poderosos antagonistas, sempre prontos a sufocar aqueles que se mostrassem insubordinados. Mais adiante, veremos como Bento, um herdeiro da classe senhorial, ao formar uma família doméstica – com uma mentalidade ainda patriarcal – veio a lidar com estas questões.
                  Porém, como já adiantamos a pouco, não foi a engenhosidade do agregado José Dias – apesar das inúmeras iniciativas – que levou Bento a abandonar os estudos teológicos, para dedicar-se à Faculdade de Direito em São Paulo, mas seu amigo Escobar, outro seminarista sem vocação, como podemos perceber nesta passagem do romance:
- Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote , que não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê-lo ordenar a sua custa, está dado um padre ao altar , sem que você...
(...)
- Sim, parece que é isso; realmente a promessa cumpre-se, não se perdendo o padre. (ASSIS, 2009, p. 187)

O casamento de Bentinho e Capitu: relações de gênero
                  A solução agradou a todos, e após Bentinho ter deixado o Seminário, concluiu estudos de Direito em São Paulo. Por ocasião de seu retorno, a presença de Capitu na casa dos Santiago já era indispensável e o casamento se deu sem qualquer preocupação com as diferenças sócio-econômicas que existiam entre eles. Na verdade, a imaturidade emocional de Bento, permitiu que Capitu a ele se impusesse, em uma união socialmente desigual.
                  O dote, tão importante em tempos anteriores para as famílias da elite nas negociações de casamento, sequer é mencionado em Dom Casmurro, o que corrobora as afirmações de Muaze, que nos explica que durante o século XIX
(...) a concessão do dote se transformou. Perdeu o caráter de veiculo privilegiado de transferência de riquezas para que um casal iniciasse sua vida produtiva . Seus valores raramente ultrapassavam a legitima e os pais não necessitavam utilizar a terça para completar ou melhorar o dote da primeira filha, como ocorria anteriormente. Apresentou-se sob outras formas e roupagens até que os debates travados na imprensa, literatura e academia de medicina e outros veículos , acrescidos de um ideal de amor romântico, acabassem, pouco a pouco, diluindo essa tradição por completo (2008, p.48).
                  Além da ausência de dote, a equidade etária do casal, que possuía apenas um ano de diferença, e um casamento por amor representam um comportamento muito distinto das preocupações da elite patriarcal empenhada na manutenção do poder e da fortuna. A família estava, efetivamente, mudando suas práticas.
                  Na narrativa de Machado, Capitu e Bento formam um pequeno núcleo familiar, residindo separadamente das famílias de origem, no alto da Tijuca. Em capítulo denominado “No Céu”, o narrador descreve poeticamente – e com a imaginação que é própria de Bentinho –, os primeiros anos de casado:
(...) o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que serão descobertas daqui a muitos séculos. (...) De quando em quando, tornávamos ao passado e divertíamo-nos em relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo de não sairmos de nós.  (ASSIS, 2009, p. 193 e 194)
                  As alterações significativas introduzidas no cotidiano das mulheres também podem ser constadas em “Dom Casmurro”, uma vez que nela são descritos os passeios, as visitas a parentes e amigos chegados, as idas ao teatro e aos bailes, tão comuns na vida dos personagens machadianos. Bento diz que nestes momentos, Capitu comportava-se “como um pássaro que saísse da gaiola” (ASSIS, 2009, p. 196). A referência feita ao termo gaiola para representar o domicílio familiar, parece sugerir que, a despeito das conquistas das mulheres, estas ainda se encontravam presas à estrutura própria da família doméstica. O casal que vivia agora para si, quando em sua residência, passava as noites na janela, contemplando o mar, o céus, as montanhas, os navios e as pessoas que passavam na praia. É o personagem Bentinho quem nos dá mais detalhes:
Às vezes eu contava a Capitu a história da cidade, outras dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochilasse um pouco. Não sabendo piano, aprendeu depois de casada, e depressa, e daí a pouco tocava nas casas de amizade. Na Glória era uma de nossas recreações; também cantava, mas pouco e raro, por não ter voz; um dia chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu o alvitre. (ASSIS, 2009, p. 197).
                  Assim que o enredo desloca-se para a família doméstica formada por Bento e Capitu, podemos perceber a introdução de alguns elementos ao cotidiano das mulheres, tais como a ampliação da sociabilidade feminina, a valorização das mulheres que soubessem tocar piano e que colocassem em prática a arte de bem-receber. Por estarem mais sujeitas à exposição pública, precisavam representar bem o esposo, onde quer que se encontrassem, demonstrando controle absoluto sobre o funcionamento do lar.
                  No que diz respeito aos papéis sociais, o homem ainda é o único provedor da família. Mas, nem tudo permanece igual, Bento, por exemplo, não vive de renda como o personagem Jorge, de “Iaiá Garcia” – outra obra machadiana- ele sustenta sua família com seu trabalho como advogado. A mulher, na figura de Capitu, permanece no âmbito doméstico, cuidando da casa e do filho, que chega depois do que foi uma longa espera para os personagens. Esta espera foi marcada pela religiosidade, pois “Capitu pedia-o em suas orações” e diz Bentinho, “eu mais de uma vez dava por mim a rezar e pedi-lo” (ASSIS, 2009, p. 196).
                  Quando Machado de Assis narra o nascimento do tão esperado filho de Bento e Capitu – que recebeu o nome de seu melhor amigo, Ezequiel (primeiro nome de Escobar), casado com a melhor amiga de Capitu, Sancha – fica nítida outra importante mudança na feição da família. A transformação a que nos referimos é a que se dá em relação ao papel da criança na família doméstica, que passa a receber muita atenção já em meados do século XIX, mesmo nas famílias patriarcais.
                  Uma das alterações introduzidas pela difusão das relações capitalistas no Brasil, foi a de que a criança passou a ser vista como uma consumidora em potencial, o que contribuiu para sua valorização. No romance machadiano, Bento relata que comprava muitos brinquedos para o menino Ezequiel: “nunca lhe dei oratórios; mas cavalos de pau e espada à cinta eram com ele. (...) Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalha que ele mirava por muito tempo (...).“ (ASSIS, 2009, p. 205).
                  O texto de Machado retrata bem as conclusões da investigação feita por Mariana Muaze, que nos explica que, com a entrada do capitalismo,
em termos de consumo, o público infantil também configurava como alvo das mais tentadoras ofertas expostas nas chamativas vitrines de algumas lojas de brinquedo da corte. Com o tempo, os brinquedos rústicos, de madeira, vão dividir espaço com os importados, muitos dos quais possuíam sofisticados sistemas de corda e dispositivos musicais (2008, p. 168).
Também corrobora a análise feita por Raquel Zumbano Atman, em seu artigo “Brincando na História”, - produzido para compor a obra “História das Crianças no Brasil”, organizado por Mary Del Priore. Neste texto, a autora afirma que em fins do século XIX, as crianças também se tornaram alvo do mercado interno brasileiro, com o surgimento de pequenas indústrias que produziam “carrinhos de madeira, bonecas com materiais cada vez mais sofisticados, os trenzinhos de metal, objetos de consumo que despertam na criança o sentimento de posse, o desejo de ter, dificultando o prazer de inventar, construir.” (2000, p. 253) Assim, estas duas autoras sugerem que o surgimento de uma sociedade de consumo – em decorrência dos efeitos do modo de produção capitalista que precisava de mais e mais mercados consumidores – transformou as formas de viver e pensar da sociedade brasileira, alcançando até mesmo as práticas e brincadeiras infantis.
                  Como relatamos no capítulo anterior, na família doméstica há uma maior proximidade entre os pais e os filhos, e, em vários momentos do romance, Machado narra a interação do menino Ezequiel com os membros adultos da família. Isto pode ser observado na descrição que realiza das imitações que o garoto faz de Escobar, da prima Justina e do agregado José Dias.  Machado também narra momentos em que o garoto sentava com o pai à mesa, vinha recebê-lo do trabalho na escada, beijava-o no gabinete pela manhã, pedia à bênção antes de dormir e frequentava as missas na companhia da mãe.  O personagem Bento expressa também sua proximidade com o filho, como se pode constatar neste trecho:
Fora, vivia com o espírito no menino; em casa, com os olhos a observá-lo, a mirá-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu estava tão inteiramente nele, e várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante. (...) As horas de maior encanto e mistério eram as da amamentação. Quando eu via o meu filho chupando o leite da mãe, e toda aquela união da natureza para a nutrição e vida de um ser (...) ficava que nem sei dizer, nem digo (...) (ASSIS, 2009, p. 201).
                  A menção à amamentação pode ser entendida como uma referência ao papel de nutriz que a mãe exercia nesta época, qualidade exaltada pelos conhecimentos médicos-cientificos em expansão neste período. Mais uma vez o romance nos permite reconstituir um período em que, gradativamente, os médicos, e não mais os padres ou professores, passam a interferir nos lares brasileiros.
                  Todos os elementos apontados até aqui, a constituição de um lar nuclear, o casamento por amor, a equidade etária, a possibilidade de uniões em disparidade sócio-econômica, casas mantidas pelo trabalho e, não apenas pelas rendas advindas do patrimônio administrado, e as mudanças no papel da mulher e da criança, atestam que Machado de Assis, no romance “Dom Casmurro”, narrou as mudanças em curso nas famílias da elite brasileira. Mas, para autores como Roncari, é o mistério maior que envolve a obra – a infidelidade ou não de Capitu – que se constitui na maior evidência – presente no enredo de Machado – de que a sociedade efetivamente mudara. Para Roncari, a família doméstica constituída por Bento e Capitu é

justamente o oposto da família patriarcal, a família doméstica que só vive o idílio (...). Essa família fechada, restrita ao casal, porém, desmorona com a traição. Idílio e traição, fechamento e traição, são dois elementos impossíveis para a família patriarcal. Esta tem que ser aberta, ampla, agregadora, tendo consigo uma dimensão de domínio social e político, caso contrário ela não se realiza de fato. E a traição destrói a própria figura do patriarca; é impensável a suspeita da traição na família patriarcal (1993, p. 211)
                  Para Chalhoub, Bento, enquanto um herdeiro da classe senhorial, “escrevendo no final da década de 1890, está empenhado em encontrar justificativas para o seu empobrecimento e decadência social” (2003, p. 83). Tomando para si a condição de vítima, é sobre a figura dos agregados, subordinados e dependentes que “Dom Casmurro” coloca a culpa de sua decadência e infelicidade, que na verdade, são conseqüências de sua inabilidade para lidar com as dimensões políticas de sua ruína. Ao longo do romance, o narrador faz um retrospecto de sua vida e reinterpreta os fatos. Aquilo que para Capitu constituía-se em uma forma de resistência e sobrevivência em uma sociedade desigual, foi analisado por “Dom Casmurro” como traição e falsidade, por isso, “Capitu não pode então escapar de sofrer os ataques e a sanha vingativa do marido, de Dom Casmurro”. (CHALHOUB, 2003, p. 84).
                  Embora esteja certo da traição, Bento não a admite para os seus. Embora a separação do casal se dê efetivamente, não é dada a conhecer aqueles com quem conviviam, devido a um estratagema criado por Bento. Capitu e Ezequiel – que, na visão de Dom Casmurro, é fruto do adultério – são enviados à Suíça, acompanhados de uma dama de companhia encarregada de lhes ensinar línguas – aspecto muito importante já que a separação era definitiva e mãe e filho deveriam permanecer no exterior. Bento viaja à Europa apenas para simular visitas à esposa e ao filho, despistando àqueles que perguntavam por eles.
                  A transição de Bento para “Dom Casmurro” demonstra o quanto foi doloroso este processo de separação, ratificando também que a troca de valores e a mudança de mentalidades não se deram tão rapidamente para muitos dos brasileiros. Do mesmo modo, as relações de gênero não sofreram alterações tão profundas com o declínio do sistema patriarcal. Pode-se dizer que isto fez com que o personagem criado por Machado, no fim de sua vida e saudoso dos tempos do patriarcalismo, decide reproduzir – em sua residência no Engenho Novo – a casa da Rua Matacavalos, assim, “num cenário físico e social tão transformado como o do Rio em 1899, Bento ainda pode pensar em construir uma casa com o mesmo “aspecto e economia” que a de sua infância”. (GLEDSON, 1986, p. 56).
                  Em “Dom Casmurro”, Machado de Assis narrou com maestria este processo de adaptação da sociedade brasileira às mudanças que vinham ocorrendo desde meados do século XIX, e que encontraram seu auge na virada para o século XX. Dentre elas, apontou para o surgimento da família doméstica, que se apresentava como um novo modelo, pelo menos, para a elite. Também deixou claro, que esta nova família, a doméstica, coexistiu com a família patriarcal em decadência, modelo que, pouco a pouco, precisou ceder espaço para o padrão nuclear burguês.
Considerações finais
Podemos dizer que Machado de Assis, em Dom Casmurro, tematiza a transformação do modelo familiar das elites a partir, entre outros fatores, da entrada maciça do capitalismo no Brasil. Nesta obra, a família patriarcal é narrada não mais em toda a sua pompa e poder, mas com foco em sua decadência e na transformação de seus valores. Machado, em razão disso, nos apresenta – em uma mesma obra –, tanto a família patriarcal, quanto a doméstica, o que se aproxima das conclusões das pesquisas mais recentes, que afirmam que não houve uma ruptura radical entre os dois modelos, já que conviveram por um bom tempo. A figura de Dom Casmurro pode ser apontada como a personificação desse doloroso e gradativo processo de mudança. Cabe ressaltar a importância assumida pela criança na família doméstica, bem como a ampliação da sociabilidade feminina, fenômenos que foram observados na família doméstica formada por Bento, Capitu e o filho Ezequiel. Por outro lado, não se pode afirmar que o surgimento da família doméstica tenha reformulado os papéis sociais ocupados pelo homem e pela mulher dentro da família visto que, apenas substitui-se o patriarca pelo pater cidadão, e que à esposa ainda cabe as tarefas estritamente relacionadas ao âmbito do lar.
                  Historicamente, diversos fatores promoveram a transformação dessas famílias, embora, inicialmente acreditássemos que o capitalismo tivesse sido o único responsável para as mudanças nas famílias da elite na virada do Império para a República. Ao longo da pesquisa, descobrimos que além da entrada maciça do modo de produção capitalista, também contribuíram para a transformação: as expressões do individualismo, a crescente urbanização, os valores românticos e a valorização do conhecimento médico – científico. De um modo especial, estes foram os propulsores da grande transformação a que as famílias da elite estiveram sujeitas. De maneira gradual, estes fatores foram moldando a cultura e o “habitus” das famílias patriarcais. Bentinho e Capitu, os personagens de “Dom Casmurro”, assim como muitos brasileiros das primeiras décadas do século XX viveram concretamente as implicações de uma sociedade marcada pelo capital e pelo consumo, pela continuidade e ampliação das expressões do individualismo e pelas transformações que a multiplicação do conhecimento promove constantemente.

Referencias Bibliográficas
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, 2009.
ALTMAN, Raquel Zumbano. Brincando na História. In: PRIORE, Mary Del. História das Crianças no Brasil. 2 ed. – São Paulo: Contexto, 2000, p. 231 a 258.
BOSI, Alfredo. Machado de Assis. São Paulo: Publifolha, 2002.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 32ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1994.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
MUAZE, Mariana. As Memórias da Viscondessa: família e poder no Brasil Império. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
RONCARI, Luis (debatedor). Direções da Pesquisa em Literatura e História. In: CHIAPPINI, Ligia e AGUIAR, Flávio Wolf. Literatura e História na América Latina: Seminário Internacional 9 a 13 de setembro de 1991. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.




[1] Graduada em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e especialista em Metodologia do Ensino pela FAP-PR. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário