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1 de abril de 2008

Historiografia Brasileira: Tendências e temáticas atuais




Tafnes do Canto[1]



Resumo: Realizar uma sondagem das principais tendências e temas abordados pela historiografia atual é trabalho frutífero para abrir novos campos de estudo, pesquisa e possíveis revisionismos. Em um tempo que os paradigmas são elásticos, pois, deixou-se o apego a teorias como se fossem hegemônicas e detentoras da verdade histórica, entendemos que a historiografia pode contribuir em nossa atuação como historiadores do presente, mesmo que voltada para pontos do passado. Sendo múltiplos os assuntos explorados pela historiografia recente, neste artigo pretendemos focar-nos em suas temáticas e seus principais autores. Entre essas temáticas, abordaremos a questão indígena, a escravidão africana e sua relação com o Antigo Regime na América portuguesa, a história das elites sob um novo olhar conceitual, a história sócio-cultural no período colonial e seus vieses, o cotidiano na América portuguesa, bem como os temas favoritos dos brasilianistas.




É uma grande surpresa que o primeiro tema de nossa lista, a questão indígena, seja tão recente a ponto de o incluirmos nas tendências deste início do século XXI. Recente para os historiadores, pois já há muitos anos estava sob a tutela dos antropólogos. Ronaldo Vainfas em entrevista publicada pela Revista História em Reflexão aponta os principais trabalhos desenvolvidos nesta área:

Na história propriamente dita, o grande “mentor” foi John Monteiro, da UNICAMP, que dirigiu teses magníficas e premiadas como da Maria Leônia sobre os índios de Minas; a da Regina Celestino sobre os aldeamentos do Rio de Janeiro; a da Cristina Pompa sobre os tapuias; a do Almir Diniz sobre os “índios cristãos” da Amazônia. Vale citar também os trabalhos do Pedro Puntoni, da USP, e da Maria Idalina Cruz, da Universidade Federal de Pernambuco, sobre os “tapuias” e a chamada Guerra dos Bárbaros. Os dois excelentes. O do Marcos Galindo, de Pernambuco, é magnífico. Eu mesmo publiquei o Heresia dos índios, em 1995, que é um livro sobre a Santidade de Jaguaripe, na Bahia quinhentista, que tem lá o seu valor como pesquisa original (VAINFAS, 2007, p.8).


Modéstia do autor á parte, trabalhos como a Heresia dos Índios, de Vainfas, e os demais citados, são exemplos de que a historiografia atual tem um interesse crescente pela forma como se constroem as identidades de determinado grupo ou nação e dos conflitos que surgem a partir dessas identidades. Mas, para Silvia Hunold Lara (2005) estas pesquisas são esparsas, a historiografia recente ainda estaria muito preocupada com os estudos da camada dominante, ao passo que carece de pesquisas no campo da história social, para haver uma melhor compreensão das revoltas populares, dos quilombos e movimentos indígenas, isso no que tange ao período colonial.
A mesma autora explica que apesar de termos muitas análises recentes sobre o Antigo Regime português, elas excluem o tema da escravidão, sem levar em conta sua importância na dinâmica das relações entre Brasil e Portugal. A sobreposição destas questões, a escravidão e o Antigo Regime português, podem gerar novas perguntas a serem respondidas pela pesquisa histórica: “Como relacionar as disputas entre as elites locais, coloniais e metropolitanas com relação ao controle dos escravos” e “Como eram aprendidos os significados da presença dos negros, das culturas africanas num mundo em que o racismo ainda não havia deitado raízes?”, são apenas algumas delas. Mas, Silvia Lara alerta: este exercício é
mais do que juntar as metades de uma laranja, trata-se de estabelecer conexões que permitam pensar relações históricas cada vez mais complexas (...) é um caminho que só pode ser trilhado conectando historiografias, indagando sobre o modo como a escravidão e o Antigo Regime estiveram intrinsecamente ligados e conviveram na América portuguesa (LARA, 2005).


Assim como o indigenismo “pertencia” aos antropólogos, por muito tempo a história das elites esteve no âmbito do direito. A sua aproximação com a história, especialmente a nova história social, delineou um “rosto” para a elite, que até então usava máscaras. No início era qualquer traço mais pessoal como a profissão ou a parentela, atualmente a historiografia tem desenhado rostos cada vez mais nítidos desta elite, identificando “‘indivíduos’ antes de lugares institucionais ou antes de posição de classe” (HESPANHA, 2005, p. 40). Antônio Manuel Hespanha, cumpre o que propõe logo no título de seu capítulo Governo, elites e competência social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites, para a obra Modos de governar, de Bicalho, ao mostrar como as diferentes perspectivas do conceito de elite podem abrir novas possibilidades para a historiografia. Pensando elite como um poder social, podemos classificar grupos ou indivíduos antes considerados subalternos como elite, por exemplo: no mundo doméstico, na medicina popular e na religiosidade marginal as mulheres são encontradas “em todo o esplendor das suas qualidades femininas, a concitar prestígio, a capitalizar poder e a suscitar obediências e fidelidades” (HESPANHA, 2005, p. 42). Assim, a elite política é apenas um viés do poder social a ser historicizado, pois ainda podemos vê-la sob a ótica da cultura, da economia, entre outras.
Temos tratado, até aqui, de grandes temáticas da historiografia brasileira atual que se subdividem abrindo um leque de opções para os historiadores de então. Com a história sócio-cultural do período colonial não é diferente, a partir dela a produção histórica encontra muitos caminhos a seguir e todos levam a um aspecto do passado por revelar. Como a vida religiosa feminina, a exemplo dos historiadores portugueses que tem transcrito e analisado auto-biografias e biografias de religiosas da Idade Moderna, que podem ser comparados com a América portuguesa na medida que existam aqui documentos similares. Ou a censura de livros e leitores, pesquisas estimuladas pelas idéias de Roger Chartier e Robert Darnton se encontram em pleno desenvolvimento na historiografia luso-brasileira. A história sócio-cultural também nos leva a história da alimentação abordada, mesmo que de forma breve, na História Privada do Brasil e no ensaio de Ulpiano Bezerra de Meneses e Henrique Carneiro A história da alimentação: balizas historiográficas. Para Leila Mezan Algrandi (2001) a devoção popular, a história da leitura, a religiosidade feminina e as relações de gênero e a cultura afro-luso brasileira merecem prioridade na agenda do milênio para as pesquisas sócio-culturais de Brasil-Portugal. Vainfas (2001) concorda com Algrandi ao afirmar que o campo da religiosidade colonial seria um dos mais carentes, acrescentando que o olhar dos historiadores de hoje precisaria estar mais preocupado em enxergar os aspectos institucionais que influenciavam a religiosidade, do que produzir densas descrições de ritos já desenvolvidos por antropólogos.
A História da Vida Privada no Brasil, já mencionada neste trabalho, é fruto do despertar do interesse dos historiadores brasileiros pelo cotidiano e a vida privada, especialmente após o sucesso de obra semelhante editada na França por Phillippe Áries e George Duby. A obra coordenada por Fernando Novaes é uma das constantes produções sobre o tema, dentro dela a autora Laura de Mello e Souza escreve Formas Provisórias de Existência: A vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras, nas fortificações, alicerçada em Capistrano de Abreu e seu mestre Sérgio Buarque de Holanda, na qual “afasta a história da vida privada de imediatismos, que descartam – ou não valorizam adequadamente – tradições clássicas, salientando uma relação crítica, via escolhas e recortes, com o passado e o presente do conhecimento histórico” (SILVA, 2006, p.66). Outros textos sobre cotidiano e vida privada são Família e Vida Doméstica, de Leila Mezan Algrandi; Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu, de Luiz Mott; Ritos da Vida Privada, de Mary del Priore; O que se fala, o que se lê: Língua, instrução e leitura, de Luiz Villalta e A sedução da liberdade, de István Jancsó, no qual trata das diferenças de idade, classe social, hábitos e até mesmo, esperanças de sediciosos envolvidos, por exemplo, na inconfidência mineira e na conjura baiana.
Por último, nos resta discorrer sobre os temas da história do Brasil na historiografia norte-americana recente. Os brasilianistas, como são conhecidos os historiadores estrangeiros que se dedicam a estudar nossa história tem beneficiado a historiografia brasileira “seja pela abertura de novas frentes de pesquisa, seja pelo acesso a documentos mantidos em arquivos estrangeiros” (DENIPOTI). Ao observar as obras produzidas pelos mesmos na atualidade, percebemos que tem se preocupado com a questão ecológica relacionado com a ocupação das terras, como as obras de Browder e Godfrey que trataram sobre a urbanização da Amazônia. Também as questões de gênero e cultura popular, procurando definir identidades e detalhar a diversidade cultural do Brasil. Exemplos de trabalhos neste sentido são Negotiating National Identity de Jeffrey Lesser, no qual trabalha até que ponto por sermos multiculturais desenvolvemos uma sociedade livre de preconceitos. Para os autores do artigo Novos brasilianistas, Cláudio DeNipoti e André Luiz Joanilho, é possível perceber na referida obra que “o olhar do pesquisador sobre nossa realidade social, a sua explicação é a tentativa de responder aos anseios e temores que a sua própria sociedade vive”. Já o livro Intimate Ironies de Brian Owensby apresenta uma nova visão sobre a Revolução de 30 ocupando uma lacuna na historiografia brasileira. Enquanto Afro-Brazilian culture and politics, organizado por Hendrick Kraay, para uma coleção que tem como objetivo revelar uma história para além do padrão, divulga aspectos distintos da cultura popular na Bahia, abrangendo um período de duzentos anos. Todas estas questões da historiografia norte-americana recente sobre o Brasil não encontram filiação com as questões propostas por nossos profissionais da história, o que promove um saudável debate entre estes dos grupos.
Como a ciência histórica é filha de seu tempo, as principais questões da historiografia brasileira recente refletem as preocupações da atualidade, de modo que assim pode a história cumprir sua função social: iluminar o presente.


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Referências Bibliográficas

VAINFAS, Ronaldo. Entrevista com Ronaldo Vainfas: História, Historiografia e Pós-graduação brasileiras. Revista História em Reflexão: Vol1 n.1 – UFGD – Dourados Jan./Jun. 2007. Entrevista concedida a Eudes Fernando Leite, Leandro Baller e Thiago Leandro Vieira Cavalcante. Disponível em:
http://www.historiaemreflexao.ufgd.edu.br/volume1/entrevista.pdf
Acesso em 16.mar.2008.

LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na América portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINE, Vera Lúcia Amaral (org.) Modos de Governar: idéias e práticas no império português Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. Texto adaptado para uso exclusivo em sala de aula.

BICALHO, Maria Fernanda; FERLINE, Vera Lúcia Amaral (org.) Modos de Governar: idéias e práticas no império português Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005, págs. 13 – 17.

HESPANHA, Antônio Manuel. Governo, Elites e competência social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINE, Vera Lúcia Amaral (org.) Modos de Governar: idéias e práticas no império português Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005, págs. 39 – 44.

Excertos selecionados de ARRUDA, José Jobson e FONSECA, Luis Adão (orgs.). Brasil-Portugal: agenda para o milênio. Bauru/SP: EDUSC, 2001.

SILVA, Marcos. Notas sobre cotidiano e vida privada na América portuguesa. In: História e Sensibilidade. Brasília: Paralelo 15, 2006, págs. 57 – 93.

Novos brasilianistas: temas de História do Brasil na Historiografia norte-americana recente, de Cláudio DeNipoti e André Luiz Joanilho.
[1] Acadêmica do curso de Licenciatura Plena em História da Unisinos.

Um comentário:

  1. Gostei do apanhado que fizestes sobre a temática historiográfica recente, preocupada com àquilo que, por um tempo, fora desprezado ou até mesmo silenciado por conta da limitação de documentos e pesquisas no assunto.

    É satisfatório saber que a escrita da história não redunde em decadências pela repetição de temas fartamente conhecidos por meio da clássica produção de nossos historiadores.

    Abraços paulistanos,

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